Revista Veja (Edição nº 2005) 24 de abril de 2007.
Liberdade Constitucional de Informação (Editora Abril).
Alexandre Oltramari.
Liberdade Constitucional de Informação (Editora Abril).
Alexandre Oltramari.
"Na maior devassa da história do Judiciário, a polícia prende
juízes sob suspeita de vender decisões – e dá início a uma faxina que tem tudo
para fazer bem ao país.
Na madrugada de 23 de novembro (2006), uma quinta-feira, um delegado e
dois agentes da Polícia Federal entraram discretamente num escritório de
advocacia no número 121 da Rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. A sala
pertence ao escritório Borges, Beildeck e Medina Advogados, e um dos sócios é
Virgílio Medina, irmão do ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Paulo
Medina. Durante uma hora e quinze minutos, numa ação sem precedentes na crônica
policial brasileira, os policiais fizeram filmagens, tiraram fotografias e, com
uma máquina portátil, fotocopiaram documentos, planilhas, anotações. Encerrado
o trabalho, fecharam silenciosamente a porta do escritório e saíram sem deixar
pista de sua passagem pelo 6º andar do edifício. Com ações inéditas como essa,
a Operação
Hurricane (furacão, em inglês), que levou 25 pessoas à cadeia,
deu início à maior devassa já sofrida pela Justiça – e, no escritório da Rua do
Ouvidor, encontrou fortes evidências de venda de decisões judiciais, num
esquema criminoso que pode ter chegado ao STJ, a mais alta corte do país para
assuntos não-constitucionais.
Na sexta-feira passada (20/4/2007), o bote sobre a Justiça continuou com a OperaçãoTêmis, nome da deusa da Justiça na mitologia grega. Desta vez, cerca de 300
policiais federais cumpriram setenta mandados de busca e apreensão e
vasculharam o gabinete de três desembargadores do Tribunal Regional Federal em
São Paulo – Roberto Haddad, Nery da Costa Júnior e Alda Basto. Além deles, os
agentes federais estiveram no gabinete de dois juízes da Justiça Federal
paulista, Djalma Moreira Gomes e Maria Cristina Cukierkorn. A suspeita
investigada em relação aos cinco magistrados é a mesma: a existência de um
esquema clandestino de venda de sentenças e liminares, quase sempre destinadas
a beneficiar empresários que exploram o jogo ilegal, sobretudo casas de bingo
que operam com máquinas de caça-níqueis, o que é proibido por lei desde 2000. O
esquema incluiria o pagamento de mesadas de 20.000 a 30.000 reais a desembargadores,
juízes e outros funcionários públicos. Até a noite de sexta-feira, o
único dos cinco magistrados a falar sobre o assunto foi a juíza Maria Cristina
Cukierkorn. Ela interrompeu a licença-maternidade, voltou ao seu gabinete e,
por meio da assessoria de imprensa, declarou-se "perplexa" com as
investigações. Afirmou que não faz idéia do motivo de ter sido incluída na
operação.
O ministro Paulo Medina é suspeito de vender liminares com a ajuda de
seu irmão, o advogado Virgílio Medina. Com gravações telefônicas, escutas
ambientais, filmagens e fotografias, a Polícia Federal documentou Virgílio
Medina vendendo três decisões judiciais do irmão. Uma delas, a favor de
empresários de casas de bingo no Rio de Janeiro, custou, segundo a polícia,
600.000 reais. "Sou um homem rigorosamente de bem, da prática do bem que
realizo em toda a minha vida", disse o ministro Medina numa nota divulgada
no domingo passado. No inquérito de 2.878 páginas, ao qual VEJA teve acesso,
Virgílio aparece negociando a propina com o advogado Sérgio Luzio Marques de
Araújo, da empresa Betec Games, que tinha 900 máquinas caça-níqueis apreendidas
pela Justiça. A empresa queria liberá-las. Em dezenas de telefonemas e três
encontros pessoais, Virgílio e o advogado da Betec discutem valores. No começo,
era 1 milhão de reais. "Tem 20% de entrada", diz Virgílio, num dos
diálogos grampeados. O preço caiu para 600.000 reais num telefonema de seis
minutos no dia 1º de agosto do ano passado. Duas semanas depois, o ministro
Paulo Medina deu uma liminar cancelando a apreensão das máquinas. Era uma
decisão tão esdrúxula que chamou a atenção da PF e acabaria revogada mais tarde
no Supremo Tribunal Federal.
Quando entraram no escritório de Virgílio Medina durante a madrugada, os
policiais encontraram mais indícios de crime. Ali, havia anotações sobre a
liminar de 600.000 reais. Acharam mais. Antes, em conversas telefônicas
monitoradas, os agentes desconfiaram que Virgílio estava negociando um
adiamento num processo do delegado Edson de Oliveira, o mesmo que prendeu PC
Farias, que foi condenado, em primeira instância, por corrupção em 1995. No
escritório, havia anotações sobre o caso do delegado – que se encontra parado
no STJ, nas mãos do ministro Medina. Na devassa noturna, os policiais ainda
acharam dois lotes de documentos internos do STJ, que só podem ser obtidos por
funcionários da corte. Numa declaração de imposto de renda, de 2005,
constataram que os irmãos tinham um elo financeiro: Virgílio fez um suposto
empréstimo de 440.000 reais ao ministro. Diz Antônio Carlos de Almeida Castro,
advogado do ministro: "O dinheiro foi declarado à Receita Federal pelos
dois. O ministro está tentando vender dois terrenos em Minas Gerais para pagar
o irmão".
Aos 64 anos, membro do STJ desde 2001, Medina não apareceu para
trabalhar nos últimos dias, abatido com as denúncias. Nos telefonemas do
ministro, não consta uma única conversa com os empresários de bingo e, nos
diálogos com seu irmão, não há menção à venda de decisões. Existe, portanto, a
possibilidade de que Virgílio mercadejasse liminares à revelia do irmão. Mas o
inquérito da Operação Hurricane traz outro caso constrangedor para o ministro.
Os grampos sugerem que ele interferiu de forma irregular para que seu
genro, o advogado mineiro Leonardo Bechara Stancioli, fosse aprovado num
concurso público para juiz no Paraná. Nos diálogos gravados, o ministro diz que
não pode "abrir o jogo" por telefone, afirma que consegue que a
sustentação oral do concurso seja feita por "outra pessoa", informa que
já conversou com os desembargadores e que a banca já fora devidamente informada
sobre seu genro. "O esquema tá montado", diz ele. "A missão está
cumprida, viu, Leo?". O genro de Medina foi aprovado em 17º lugar no dia
28 de novembro do ano passado. O resultado do concurso foi homologado duas
semanas depois.
A Operação Hurricane foi uma das maiores da história policial, mobilizou 400 agentes e apreendeu 2 toneladas de documentos, em papel e meio magnético, além de capturar 19 armas, 51 veículos de luxo, 523 jóias, 160 relógios de marcas famosas e muito dinheiro em cheque e moeda sonante, no valor de 10 milhões de reais. Numa cena da operação, filmada pelos próprios policiais, aparece um agente derrubando uma parede falsa no escritório de um advogado do Rio e, atrás dela, surgem 4 milhões de reais em dinheiro vivo. Um policial exclama, entusiasmado: "Muita grana, moleque!". Mais do que pelo robusto resultado das apreensões, a investigação policial chama atenção pela ousadia da máfia dos bingos – formada por empresários, advogados e pela velha cúpula do jogo do bicho no Rio de Janeiro, como os veteranos Aniz Abrahão David, Antônio Petrus Kalil, o "Turcão", e Ailton Guimarães Jorge, o "Capitão Guimarães", todos presos. Além das suspeitas de que pode estar envolvido um ministro do STJ, a investigação descobriu que os criminosos chegaram a tentar aproximar-se até da presidente do Supremo Tribunal Federal, a ministra Ellen Gracie, que tomou uma decisão contrária aos interesses da máfia. Nas conversas monitoradas, fica claro que nada conseguiram.
Nos
seus primeiros desdobramentos, as operações policiais estão concentradas nos
Tribunais Regionais Federais, cortes que tratam da legalidade do jogo – assunto
com uma história tão controvertida no país que já sofreu influência até de
primeira-dama (veja o quadro). Em São Paulo, no âmbito da Operação Têmis, os
policiais vasculharam o gabinete de três desembargadores na Avenida Paulista,
em busca de indícios da venda de decisões para casas de bingo. No Rio de
Janeiro, na Operação Hurricane, monitoraram os passos de dois desembargadores
do TRF e conseguiram autorização para prender ambos. Um é o desembargador José
Eduardo Carreira Alvim, cujo genro, Silvério Nery Júnior, foi flagrado
negociando liminar do sogro por 1 milhão de reais com emissários de bingueiros.
Além disso, o genro recebeu de presente da máfia um Mercedes-Benz de mais de
300.000 reais, foi fotografado embolsando dinheiro de bingueiro num shopping do
Rio de Janeiro e grampeado em conversas com o sogro. Numa delas, Carreira Alvim
explica que quer seu quinhão em moeda sonante. "Aquela idéia sua..., parte
em dinheiro, tá?", diz ele ao seu genro, que responde: "Pode deixar,
tá tudo na cabeça aqui, não se preocupa". Carreira Alvim, em decisão
inteiramente descabelada e sem amparo legal, concedeu a tal liminar – logo
cassada.
O
outro desembargador preso é José Ricardo de Siqueira Regueira, o mais discreto
e desconfiado dos investigados, mas que, apesar de todos os cuidados, já
apareceu envolvido na venda de sentença para a máfia que adultera combustíveis.
Para enfrentar a investigação de agora, Regueira montou até um sistema
antiespionagem em seu gabinete, impedindo a instalação de escutas ambientais.
Ainda assim, foi fotografado em animados almoços em restaurantes com o advogado
Jaime Dias, que faz o papel de trem pagador da máfia dos bingos, e acabou
flagrado na escuta instalada no gabinete do seu colega Carreira Alvim – um
diálogo que mostrou indícios eloqüentes de que ambos atuavam em conjunto. Um
terceiro desembargador também foi preso. É Ernesto da Luz Pinto Dória, que
despacha no Tribunal Regional do Trabalho, em Campinas. Ele é o oposto de
Regueira. Falastrão, foi flagrado em conversas prometendo milagres jurídicos e
fazendo lobby junto a assessores de desembargadores, aos quais oferecia
relógios e viagens. Num caso, oferece regalos a um assessor para que ele
pressione o chefe, um desembargador do Tribunal de Justiça do Rio, a tomar
determinada decisão. Ao seu cliente, um advogado que começa a desconfiar dos
seus serviços, o desembargador faz autopropaganda. "Não é para ter medo.
Quando a Polícia Federal estourar o escritório de vocês, aí pode ter medo.
Confie no meu taco. Não fui feito desembargador federal nas coxas", diz.
Por esse lobby, que acabou não dando certo, o desembargador foi pilhado pela
polícia cobrando 25.000 reais.
Apesar
da amplitude do bote policial sobre a banda podre da Justiça, ações ainda mais
ousadas estão por vir. VEJA apurou
que está nas mãos do ministro do STF Joaquim Barbosa um pedido de prisão de
ministros do STJ supostamente envolvidos com a venda de sentenças. O caso diz
respeito ao advogado e lobista RobertoBertholdo, preso em Curitiba no fim de 2005. Bertholdo foi pilhado numa escuta telefônica tramando a compra de
uma liminar, por 600.000 reais, do ministro Vicente Leal, do STJ. Leal se
aposentou recentemente sob suspeita num outro caso, o de venda de decisões
judiciais a traficantes. No grampo, Bertholdo antecipa ao seu cliente as decisões
que serão tomadas – e, mais tarde, tudo acontece do modo como prevê. Diz, por
exemplo, que Vicente Leal dará uma decisão favorável ao cliente. E isso
acontece. Depois diz que, quando a decisão fosse analisada pelos demais
magistrados, o ministro Paulo Medina entraria em ação, retardando o processo. E
isso também acontece. As investigações colheram a suspeita de que Bertholdo
tinha ligações com outro advogado, Octávio Fischer, que vem a ser filho de
Felix Fischer, ministro do STJ, o mesmo que, na semana passada, proibiu a Operação Têmis de prender magistrados
em São Paulo.
Nada
é mais fulminante para a credibilidade do Judiciário do que a suspeita sobre a
legitimidade de suas decisões – que, num estado de direito democrático, são
soberanas e devem ser cumpridas por todos. Mas é preciso compreender que,
apesar da vastidão das operações policiais, a Justiça brasileira é um poder
íntegro e correto. É a sua banda podre e corrupta que está sendo exposta à luz
do dia – e isso é altamente positivo. Tanto que as operações policiais
aconteceram com o apoio decisivo da própria Justiça. No caso da Operação Hurricane, por exemplo, tudo
começou num incidente em Niterói no qual uma juíza autorizou a polícia a usar
escutas telefônicas. Agora, o caso é conduzido pelo ministro Cezar Peluso, do
Supremo Tribunal Federal, que tem trabalhado em sintonia com a Polícia Federal.
"As operações cortam o Judiciário na própria carne", afirma o juiz
Rodrigo Collaço, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). "Mas
considerar que o Judiciário, que tem 13.000 juízes, está podre por causa de
meia dúzia de magistrados não condiz com a verdade."
Examinando-se
o quadro geral da Justiça, não existe nenhum sinal de que a corrupção esteja se
expandindo de modo alarmante entre os magistrados. As operações da semana
passada podem dar essa impressão, mas elas devem ser atribuídas muito mais a um
salto de qualidade no trabalho policial. Na Operação Hurricane, por exemplo, os agentes federais usaram algumas
das técnicas mais avançadas de investigação para cercar a quadrilha. O aparato
inclui a instalação de escutas ambientais, filmagens e o monitoramento de
investigados em tempo real, além de discretas incursões noturnas em
escritórios, com a devida autorização judicial, sem deixar pistas. O aspecto
que deve chamar a atenção das autoridades do Judiciário é que tudo começou no
âmbito policial, um sinal inequívoco de que a própria Justiça não dispõe de
mecanismos eficazes para detectar a corrupção entre os magistrados. Nos quinze
anos em que trabalhou em tribunais em São Paulo, Luiz Flávio Gomes, juiz
aposentado e ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), diz que jamais
viu uma investigação interna punir um juiz. "As corregedorias funcionam
precariamente, sem estrutura, e são dominadas pelo corporativismo.
Investigações contra escreventes costumam ir a fundo, mas as que envolvem
juízes são sigilosas e quase sempre são arquivadas", afirma. O próximo
passo será fazer com que a Justiça comece a trabalhar no sentido de se
autofiscalizar com eficiência – para o bem dos magistrados, cuja maioria é
formada por profissionais honestos, e para o bem do Brasil, que precisa
acreditar na Justiça que tem.”
https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/operacao-furacao-e-cuidados/
Jornal da Gazeta:
Editora Abril/VEJA respondeu demanda judicial, com êxito no litígio.
Jornal da Gazeta:
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