O Esquema de Bertholdo
Revista
ISTOÉ (edição
nº1917) de 19 de julho de 2006.
Hugo
Studart e Rudolfo Lago. Colaborou Ana Carvalho.
"
Amigo de poderosos e cotado para o Ministério, o
lobista Roberto Bertholdo criou um milionário propinoduto na Justiça do Brasil
Em uma cela da Polícia Civil, no Paraná,
encontra-se Roberto Bertholdo, um
advogado articulado, bem educado e sedutor. Preso há oito meses, ele é acusado
pelos crimes de tráfico de influência, compra de sentenças judiciais e lavagemde dinheiro. Antes de ir parar no xadrez, Bertholdo era conselheiro da estatal
Itaipu Binacional, circulava com desenvoltura nos bastidores dos Três Poderes e
estava cotado até para ser ministro do Desenvolvimento ou do Esporte, na última
reforma ministerial, na cota do PMDB. Mas o mundo de Bertholdo caiu. Em
novembro passado (2005) ele foi
detido após investigação do Ministério Público. Esta semana, ISTOÉ pôs as mãos em um calhamaço de
mais de 500 páginas que descrevem os detalhes do esquema que levou Bertholdo à
prisão. Trata-se da Ação Penal Pública
(Procedimento Criminal) 2005.70.00.029546-2,
que corre na 2ª Vara Criminal de
Curitiba, em segredo de Justiça. Os delitos cometidos por Bertholdo,
segundo aponta a ação do Ministério Público, envolvem ministros e ex-ministros do
Superior Tribunal de Justiça. E mais: o esquema de lobby para venda
de sentenças seria administrado por alguns dos filhos desses ministros. Para o Ministério Público, Bertholdo era o
pivô, o elo entre clientes e o Judiciário.
A ação, resultado de uma força-tarefa do Ministério
Público com a Polícia Federal para
investigar evasão de divisas e lavagem de dinheiro, expõe o intestino de um
grande esquema de corrupção na Justiça – e, de quebra, muitas histórias
paralelas de mensalão, falcatruas no governo, tortura física e sexo. No caso
mais grave, ponto central da denúncia de
cinco procuradores contra Bertholdo, ele é acusado de oferecer suborno a
ministros do STJ para reverter um caso em favor de um cliente. Bertholdo era
advogado do empresário e político paranaense Antônio Celso Garcia. Nas eleições
de 2002, Tony Garcia, como é
conhecido no Paraná, era deputado estadual e candidato ao Senado pela segunda
vez – e Bertholdo era seu suplente.
Para que pudesse se candidatar, Garcia precisava de um habeas corpus que trancasse um processo no qual era acusado
de crime contra o sistema financeiro por envolvimento numa fraude do consórcio Garibaldi, liquidado pelo
Banco Central em 1994. Bertholdo foi então contratado para “limpar” o nome de
Garcia. No dia 1º de agosto de 2002, ele impetrou habeas corpus em favor de Garcia. É aí que começa a história de corrupção contada pelo Ministério
Público, a partir da denúncia inicial de um ex-sócio de Bertholdo, Sérgio Costa
Filho.
Por conta de desentendimentos sobre dinheiro,
Bertholdo chegou a espancar e torturar Sérgio Costa Filho, que deu o troco
fazendo a denúncia. De acordo com a denúncia de Sérgio ao MP, Bertholdo pediu a
Tony Garcia R$ 600 mil, dinheiro que seria usado para que o então ministro
Vicente Leal concedesse liminar no pedido de habeas corpus. De fato, no
dia 2 de agosto, a liminar saiu, por decisão do ministro Vicente Leal e, com
ela, Tony Garcia pôde concorrer às eleições. No dia 8 de agosto, Tony Garcia
emitiu um cheque de sua empresa, a Maggiore Comércio de Combustíveis Ltda., que
foi depositado na conta da empresa de Bertholdo, a Antecipa Consultoria. Aos
poucos, o valor foi saindo da conta em vários saques em dinheiro vivo, feito
por pessoas como o motoboy Luiz Marcelo Alves.
Uso de laranjas – O MP
desconfia que Bertholdo usou de “laranjas” para sacar o dinheiro e depois
entregá-lo aos ministros envolvidos na operação em favor de Tony Garcia.
Segundo a denúncia feita por Sérgio Costa Filho aos procuradores havia outras
pessoas, além do ministro Vicente Leal, envolvidas na venda da sentença. OtávioFischer e Pedro Aciolli, filhos do ministro do STJ Félix Fischer e do
ex-ministro Pedro da Rocha Aciolli, teriam intermediado a operação no
Judiciário em Brasília. Após a concessão da liminar, nova operação de dinheiro
teria sido feita, conforme mostra a ação. Dessa vez, para assegurar um
resultado favorável no julgamento do mérito do pedido de habeas corpus.
Sérgio Costa Filho afirmou em seu depoimento que Bertholdo pediu a Tony Garcia
R$ 500 mil para garantir o resultado. Tony, porém, conseguiu baixar a quantia
para R$ 180 mil. Para o julgamento, Bertholdo trabalhou com a possibilidade de
o ministro relator Paulo Galotti negar o habeas corpus. A segunda
estratégia para favorecer Tony Garcia, porém, seria o ministro Paulo Medina pedir vistas do processo, postergando a decisão final. Foi o que efetivamente ocorreu
no dia 7 de junho de 2004.
É por envolver autoridades do Poder Judiciário,
como se vê acima, que o processo corre em segredo de Justiça. Os ministros e
seus filhos envolvidos ainda não foram ouvidos no processo. A acusação do
Ministério Público ajuda a explicar, porém, como políticos, a despeito dos
processos judiciais que sofrem, conseguem se manter no páreo eleitoral. Há duas
semanas, por exemplo, o Tribunal de Contas da União divulgou uma lista com nada
menos que 2,9 mil políticos e administradores que, por conta de seus atos,
estariam inelegíveis. E muitos deles continuam disputando as eleições de
outubro.
Roberto Bertholdo não é um preso qualquer. Sua
influência em Brasília remonta do governo Collor, mas foi no governo Lula que
ele cresceu de forma exponencial. Primeiro foi nomeado conselheiro de Itaipu,
se aproximou de grandes fornecedores da Estatal e, ato contínuo, sua casa em
Brasília, no bairro do Lago Sul, virou um discreto reduto de conversas entre
parlamentares, empresários e autoridades públicas. Em seus negócios privados,
Bertholdo virou o representante junto ao Banco Central do espólio do banco
Bamerindus, que sofreu intervenção e foi vendido há uma década para o inglês
HSBC. Saiu-se tão bem na causa que foi adquirindo participações da família
Andrade Vieira, fundadora do banco, até se tornar dono de quase 70% dos
direitos sobre o Bamerindus. Em fins do ano passado (2005) a família Magalhães Pinto o
contratou para tentar terminar também com a intervenção do Banco Nacional,
anexado pelo Unibanco – e desta forma liberar R$ 6 bilhões retidos no BC. Nessa
época, aos 43 anos, Bertholdo queria finalmente sair das sombras. Articulava
com seu amigo do Paraná, o deputado José Borba, líder do PMDB, uma nomeação
como ministro do governo Lula, do Esporte ou do Desenvolvimento. Bertholdo foi
abatido pela prisão, durante as articulações da reforma ministerial.
Festa para juízes – O calhamaço produzido pelo Ministério Público e pela Justiça, porém,
não pára nessa denúncia de compra de sentença no Poder Judiciário. Bertholdo
começou a chamar a atenção dos Procuradores da República que investigavam casos
de lavagem de dinheiro sujo e evasão de divisas a partir das contas CC-5 doBanestado. Primeiro descobriram remessas suspeitas de Bertholdo para uma conta
em Luxemburgo; depois monitoraram movimentações entre a conta no paraíso fiscal
e uma conta do Itaú em Brasília, na agência do Lago Sul, aberta em nome de um
certo Anselmo, que mais tarde os procuradores descobriram ser o motorista de
Bertholdo. Nessa época, Bertholdo circulava com uma frota de automóveis
importados – em Brasília, mantinha dois Audi A-6. Ocorreram então algumas
coincidências. Primeiro, Tony Garcia foi apanhado pela força-tarefa doBanestado. Ficou preso entre dezembro de 2004 e fevereiro de 2005. Mas acertou
com o MP entrar para o programa de delação premiada. Recebeu telefones
grampeados pela PF e passou a usar um gravador colado ao corpo em suas
conversas com pessoas suspeitas. Bertholdo era seu principal alvo. Ao mesmo
tempo, ele era também monitorado por Sérgio Costa, sócio de Bertholdo.
Suspeitando que estava sendo monitorado, Bertholdo acusou Sérgio de desviar R$ 900 mil e de instalar grampos telefônicos e câmaras ocultas no escritório
que ambos mantinham em Curitiba. Segundo relatou aos procuradores, Sérgio
chegou a ser preso e algemado por Bertholdo, com a ajuda de seu segurança e de
dois homens que se diziam policiais civis. De acordo com Sérgio, Bertholdo o
espancou e o torturou com choques elétricos por 14 horas para que revelasse
onde estariam os R$ 900 mil. Depois Sérgio foi encaminhado ao MP para revelar
tudo o que sabia sobre Bertholdo. Em seu depoimento, só se refere ao ex-sócio
como “meliante”.
Dos depoimentos de Tony Garcia e Sérgio Costa,
assim como das gravações telefônicas, as autoridades produziram um conjunto de
provas tão impressionantes sobre o funcionamento do poder federal quanto as
revelações que há um ano vieram à tona com as histórias que envolvem Marcos
Valério e Delúbio Soares. Uma das confidentes de Bertholdo, com quem costumava
manter longas conversas ao telefone, era Mirlei de Oliveira, cafetina predileta
das autoridades de Curitiba. Numa das gravações, ela conta que estaria sendo
pressionada a revelar detalhes das suas relações com Bertholdo. Como festinhas
que ele promoveria para juízes em hotéis com as garotas de Mirlei. Numa das
conversas, ela se refere a uma festa específica, ocorrida no Hotel Bourbon, em
Curitiba. “Fiz tanta festa para atender juízes, que não sei que festa é essa”,
responde ela.
Remessas para Luxemburgo – Os grampos telefônicos também descortinam novos detalhes do esquema do
mensalão. Sabe-se hoje que Marcos Valério era o principal operador do mensalão
junto a deputados do PT, PL e PPB, três das legendas da base aliada do governo.
De acordo com o MP, Roberto Bertholdo era o operador do mensalão junto ao PMDB
– e 51 dos 81 deputados do partido receberiam dinheiro do lobista para votar
com o governo. O advogado teria entrado na operação através do deputado
paranaense José Borba, líder do PMDB na Câmara. No início do governo, Bertholdo
foi nomeado conselheiro de Itaipu na cota de Borba. Segundo o processo, ele
ajudava o ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares a operar um esquema de remessa de
dinheiro para Luxemburgo. Também teria operado, a partir de Itaipu, para
irrigar com recursos as campanhas de candidatos do PT a prefeituras do interior
do Paraná, como Maringá, Londrina e Cruzeiro d’Oeste.
Uma das gravações que estão no processo corrobora
uma história que chegou a circular logo que o esquema do mensalão foi
descoberto. Teria ocorrido uma reunião da qual participaram os então líderes do
PP, José Janene, do PL, Sandro Mabel, o presidente do PL, Valdemar da Costa
Neto (SP), e o líder do governo na Câmara, o petista Arlindo Chinaglia. Numa
conversa com Tony Garcia, gravada por ele próprio, Bertholdo conta que durante
essa reunião Janene e Mabel teriam dito que o presidente Luiz Inácio Lula da
Silva conhecia todos os detalhes do esquema de compra de deputados da sua base
de governo. Mais adiante, ainda segundo o relato de Bertholdo para Tony Garcia,
Sandro Mabel teria dito: “Só eu falei umas 20 vezes pro presidente.”
A história de Bertholdo é ilustrativa para entender
as relações incestuosas do poder. Ele começou a freqüentar Brasília há 20 anos,
jovem advogado, levado pelo sogro de então, o deputado Erwin Bonkoski, um dos
líderes do Centrão na era Sarney. A primeira vez que se envolveu com política
foi em 1990, quando disputou o mandato de deputado estadual pelo extinto PRN de
Fernando Collor – nesse pleito, Tony Garcia foi candidato a senador. Derrotado
nas urnas, Bertholdo voltou a Brasília logo depois, em 1991, como lobista da
empreiteira do sogro, a Tibagi, na época enrolada com cinco processos na
Receita Federal. Durante o governo Collor, Bertholdo se tornou o melhor amigo
do comandante Jorge Bandeira, piloto e sócio de PC Farias. Desde então
freqüentador das melhores festas da corte, conseguiu se tornar advogado junto aos tribunais superiores de alguns pesos pesados da política paranaense, como
os deputados José Janene e José Borba. Chegou a Itaipu em junho de 2003, na
cota de Borba, mas por indicação junto ao Planalto do amigo Daniel Godoy,
advogado ligado à cúpula do PT. No ano seguinte, quando surgiu o vídeo em que
Waldomiro Diniz pedia propina ao bicheiro Carlinhos Cachoeira, Bertholdo foi
sondado pelo amigo petista para ocupar seu lugar, como subchefe do Gabinete
Civil do Planalto. Recusou por achar que ficaria muito exposto. Desde novembro,
esse advogado ambicioso ocupa uma cela no Centro de Operações Especiais da
Polícia Civil, em Curitiba. Seus processos tramitam rápido. Aos procuradores,
Bertholdo diz que gostaria de entrar no programa de delação premiada. O
problema é que, na hora de falar, continua jurando inocência e contando a
versão de que não deu nenhuma propina aos ministros do STJ. Dias atrás, a um
dos poucos amigos que restaram, Bertholdo disse que está com muito medo de
morrer. “Sou hoje o maior arquivo vivo do País”, explicou. Seu amigo lhe deu um
único conselho: “É melhor contar logo tudo o que você sabe.”."
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